A invasão de residências pela polícia sem o devido mandado judicial é, infelizmente, uma situação mais comum do que deveria ser. Mesmo que pareça uma cena de filme, essa ação indevida acontece no Brasil com recorrência, especialmente em casos envolvendo suspeitas de tráfico de drogas.
De qualquer forma, é importante entender que a casa é um espaço protegido pela Constituição, e, em muitas situações, a entrada de policiais sem um documento oficial pode ser considerada uma ilegalidade.
O direito de manter a casa protegida
O artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal de 1988 garante que "a casa é asilo inviolável do indivíduo, definindo que ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito, desastre ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial". Isso significa que o lar é um lugar de proteção, um espaço que o Estado não pode invadir arbitrariamente e as únicas exceções são situações extremas que justifiquem uma intervenção imediata.
No contexto jurídico, o flagrante delito se refere a uma situação em que um crime está sendo cometido naquele exato momento ou acabou de ser cometido. A interpretação deste conceito, no entanto, é muitas vezes usada de maneira ampla demais, especialmente quando envolve alegações de crimes relacionados a drogas.
"Cheiro de droga" é suficiente para a entrada da polícia?
Muitas pessoas que enfrentam processos por crimes relacionados relatam que a polícia entrou nas respectivas casas sem mandado, alegando ter sentido um "cheiro de drogas". O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se posicionado de forma clara: essa justificativa é, muitas vezes, subjetiva e insuficiente para legitimar a violação da inviolabilidade domiciliar.
O STJ tem reafirmado que a entrada em domicílio sem mandado judicial só é legítima se houver “fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito”, conforme decidido no Recurso Especial nº 1.574.681/RS, de relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz.
Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário nº 603.616/RO, também firmou esse entendimento ao fixar a tese de repercussão geral no Tema 280, destacando que não basta uma suspeita genérica para que o direito à inviolabilidade domiciliar seja mitigado.
A questão da "fundada razão" e a necessidade de provas concretas
As “fundadas razões” indicam uma situação de flagrante delito dentro da residência, uma vez que a mera percepção de uma possibilidade de existência de drogas - sem mais provas ou evidências concretas - não é suficiente para justificar a invasão do espaço privado.
Nesse sentido, decisões recentes do STJ, como o Habeas Corpus nº 598.051/SP, enfatizam que essa justificativa é altamente questionável, principalmente porque é um relato que depende apenas da palavra dos próprios policiais, sem qualquer documentação adicional que a sustente.
Em caso semelhante, o Cl.STJ, por meio do HC 896.386/SP, anulou todas as provas decorrentes de uma entrada ilegal de agentes policiais no domicilio do investigado. Na ocasião,o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, ressaltou que a versão apresentada pelos policiais militares foi no minimo" duvidosa e questionável", de modo que não haviam elementos que demonstrassem, para além da dúvida razoável, que o imóvel era objeto de um crime em andamento.
De acordo com o Código de Processo Penal (CPP), as provas obtidas por meios ilícitos são inadmissíveis, conforme estabelece o artigo 157. O §1º que reforça que “são também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras”.
Em outras palavras, se a entrada da polícia foi realizada de forma ilegal, todas as provas obtidas em consequência dessa ação também são consideradas ilegais e, portanto, devem ser anuladas.
O consentimento do morador
Outra questão importante que merece destaque é o consentimento do morador para a entrada dos policiais na residência, já que o STJ tem reforçado a necessidade de que a permissão seja comprovada de forma robusta, especialmente para evitar que abusos de poder se tornem comuns.
A Sexta Turma do STJ, no julgamento do Habeas Corpus nº 598.051/SP, de relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz, estabeleceu que, para que o consentimento seja considerado válido, ele deve ser documentado por meio de gravações em vídeo e áudio, que comprovem que o morador aprovou livremente, sem qualquer tipo de coação ou constrangimento.
Essa diretriz é essencial para garantir a veracidade do consentimento e proteger o direito constitucional à inviolabilidade do domicílio. Não é raro que policiais aleguem que o cidadão autorizou a entrada, mas, sem documentação adequada, essa alegação pode ser facilmente questionada. A ausência de registro audiovisual levanta sérias dúvidas sobre a voluntariedade e a autenticidade do consentimento. Além disso, o STJ determina que, sempre que possível, a permissão deve ser registrada por escrito e na presença de testemunhas - o que traz mais transparência e segurança ao procedimento.
O ministro Rogério Schietti, no voto do referido habeas corpus, ressaltou que o consentimento “precisa ser inequívoco, específico e conscientemente dado, não contaminado por qualquer truculência ou coerção”. Portanto, caso haja uma situação semelhante, lembre-se de que o ônus da prova sobre a legalidade da entrada no domicílio recai sobre o Estado.
É preciso lutar por direitos
Em casos que os direitos são violados pela entrada forçada da polícia em casa sem um mandado judicial, existem caminhos para lutar contra essa ilegalidade. A residência é um local preservado, e isso não pode ser relativizado sem uma justificativa muito clara e concreta.
O Brasil é um país que se orgulha de ser um Estado Democrático de Direito, onde as garantias fundamentais devem ser respeitadas em todas as circunstâncias. O Judiciário, em paralelo, tem se mostrado um importante aliado na proteção da inviolabilidade do domicílio e no combate aos abusos de autoridade. A intimidação não pode se sobressair. É preciso adquirir conhecimento, buscar apoio jurídico e lutar pela segurança dos direitos humanos. A casa é e deve ser reconhecida como um asilo inviolável.
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